sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Ler com o Sr. Luís #1

Luís Alves Dias é um livreiro com uma vida que dava um livro. É também o proprietário, desde 1970, da Livraria Ler, que fica em Campo de Ourique, na Rua Almeida e Sousa, junto ao Jardim da Parada. Para além de conhecer o bairro desde pequeno, tive o prazer de viver nele durante 7 anos, 3 dos quais precisamente no prédio da Livraria Ler. Durante estes 7 anos privei inúmeras vezes com o Sr. Luís, que para além de se ter tornado o meu livreiro particular, acho que posso afirmar se tornou também num bom amigo e num excelente contador de excelentes histórias literárias.

Há alguns anos gravei uma longa conversa com o Sr. Luís, onde se conta a sua história de vida dedicada aos livros e algumas histórias vividas com personagens literárias da nossa praça. Parece-me ser agora oportuno publicar aqui a nossa conversa, talvez porque há 3 anos deixei Campo de Ourique por outro bairro lisboeta e recentemente revisitei o Sr. Luís, o que já não fazia há muito tempo. A nostalgia tem destas coisas.

Mas porque as nossas conversas eram de facto longas, sentidas e repartidas, esta vai surgir aqui em vários capítulos ao longo dos próximos dias. Espero que gostem e que se sintam motivados a visitar o Sr. Luís e a sua Livraria Ler. Porque já não se fazem livrarias e livreiros assim.

OS PRIMEIROS CAPÍTULOS

Desde 1970 à frente da Livraria Ler, em Campo de Ourique, Luís Alves Dias é um livreiro com 69 anos de vida dedicada aos livros, a quem a iliteracia portuguesa não apaga a esperança no futuro. É que a magia das letras não está só em quem as escreve e em quem as lê. Está também em quem as sabe vender.

Quando e como é que entrou no mundo dos livros?
Aos 13 anos. Eu nasci na Galiza a 18/2/1932, filho de pai português e mãe galega, mas sou português, porque o meu pai registou-me logo no consulado. Vim definitivamente para Portugal quando começou a guerra civil espanhola e o meu pai meteu-me no Instituto Espanhol, ali ao Marquês do Pombal, onde tirei da 4ª classe ao 2º ano. Como os meus pais não pensavam em regressar a Espanha, acabei por mudar para uma escola portuguesa, onde tive de refazer a 3ª e a 4ª classe em português, porque não me davam equivalência para entrar no liceu. Mas como já tinha 13 anos, não podia ir à escola de dia. Tinha de ir à noite. E assim foi. Como não fazia nada de dia, ia ali para a Livraria Aillaud & Lello, na Rua do Carmo, ler umas revistas brasileiras do Super-Homem e do Homem Borracha. Até que um dia o gerente, o Artur Grana, me perguntou se eu não estudava. Eu contei-lhe a minha odisseia e ele ofereceu-me trabalho na Lello, que eu aceitei, depois do aval do meu pai.

O seu pai também estava ligado aos livros?
Não. O meu pai era GNR.

Quanto é que começou a ganhar na Lello?
Fui ganhar 300 escudos por mês. Naquela altura era muito dinheiro. Entretanto fiz a 3ª e a 4ª classe num ano e o meu pai disse-me então que eu tinha de deixar de trabalhar para ir estudar para a escola comercial. Como os patrões gostavam de mim, tentaram convencer o meu pai, que não se demoveu. Como aquele dinheiro me dava muito jeito, porque eu já fumava, comprometi-me com o meu pai a continuar a trabalhar de dia e a fazer o curso comercial de noite. Se não conseguisse superar as dificuldades, deixaria de trabalhar no ano seguinte. Os estudos correram bem e eu continuei na Lello. Foi por esse motivo que comecei a trabalhar muito cedo.

Esteve muito tempo na Lello?
Ainda estive uns 15 anos, durante os quais me casei e nasceram primeiro o Luís Manuel e depois a São.

Casou-se quando?
Casei-me em 1957. Mas antes disso ainda fui à tropa. Estive na Índia 2 anos.

Esteve na Índia até ao fim?
Não, vim antes. Regressei a Lisboa no dia 14 de Dezembro de 1954.

Já tinha a noção de que a Índia estava perdida?
Aquilo estava mais que perdido. Quando lá chegámos já não havia praticamente nada. Quando regressei consegui voltar para a Lello, porque naquela altura os patrões tinham que guardar o emprego a quem fosse para a vida militar. Era da lei.

Voltando então à Lello...
Foi na Lello que tive mais contacto com escritores, pintores, artistas de cinema e teatro. Foi a minha faculdade da vida. Conheci o Manuel Campos Pereira, o Soeiro Pereira Gomes, o velho Torga, o Alves Redol... Esses grandes escritores. Nessa altura havia uma tertúlia fabulosa, que juntava entre 20 a 25 pessoas, desde economistas, a professores, pintores, escritores, artistas de teatro... o António Silva, o Villaret. Os grandes artistas da época passavam por lá. Nós até tínhamos uma pequena tertúlia de vários livreiros, e de vários amigos que trabalhavam ali na Baixa, no Café Martinho, que era em frente à Estação do Rossio. Passavam por lá rapazes que trabalhavam na Rodrigues, na Parceria António Maria Pereira, na Livraria Portugal.

Mas acabou por sair da Lello.
Quando nasceu a minha filha foi a primeira vez que pedi aumento ao patrão. As despesas eram maiores. Tenho que dizer que o José Lello era muito meu amigo e tratou-me sempre muito bem. Mas naquele dia acordou mal disposto e quando eu o abordei ele respondeu: “não fui eu que te mandei fazer a filha”. Eu não disse nada, mas fiquei sentido. Naquele dia, como saí mais cedo, passei pela Livraria do Diário de Notícias, ali no Rossio. Quando estava a olhar a montra, o Lúcio Pereira, gerente da livraria, abordou-me e eu contei-lhe o que se tinha passado. O extraordinário é que ele acabou por me convidar para ir para a livraria do Diário de Notícias, com condições muito melhores. Eu estava a ganhar nessa altura 1800$00 na Lello, e ia passar a ganhar 2200$00, mais 150$00 por fazer a montra. Estes eram uma gratificação que o Diário de Notícias dava.

Estávamos em que ano?
Acho que estávamos no mês de Agosto de 1959, e eu fiquei de entrar ao serviço no dia 1 de Outubro. A única condição foi eu não dizer na Lello para onde ia, porque o José Lello era muito amigo dos administradores do Diário de Notícias. Uns dias depois anunciei a minha saída, dizendo que ia para um escritório na Av. Da Liberdade. O José Lello pediu-me 3 ou 4 meses, mas eu só tinha um mês. Como tal, disse-lhe que se ele quisesse que me metesse em tribunal, ou que me pedisse uma indeminização. É escusado dizer que ele ficou aborrecido, mas não fez nada. E comecei entretanto a trabalhar na Diário de Notícias.

Quais eram as suas tarefas?
Empregado de balcão. Com o Zé Lapas e o Cortes. Contudo, em Novembro, o José Lello convidou-me para ir novamente para a Lello. As condições que ele me dava eram muito boas, mas como eu tinha prometido ao Lúcio Pereira que não saía do Diário de Notícias durante 5 anos, não aceitei. A coisa ficou por aqui. Mas passados 3 ou 4 dias, o José Lello veio falar outra vez comigo, para ver se eu podia dar uma ajuda na Lello da parte da tarde, visto que à tarde eu não tinha trabalho no Diário de Notícias. Depois de pedir autorização ao Lúcio Pereira e à administração do D.N. voltei a trabalhar na Lello, mas só à tarde. Estive nessa situação durante 3 anos. O meu grande espanto foi quando me foi pago o primeiro mês de ordenado na Lello, o mesmo que eu estava a ganhar antes de sair: 1800$00. O que para mim foi esplêndido.

Quanto tempo esteve na Diário de Notícias?
Estive 5 anos. Depois, o Álvaro Gonçalves Pereira veio convidar-me para eu abrir o Centro do Livro Brasileiro, na Rua Rodrigues Sampaio, ali ao pé do Tivoli. Eu expus as minhas condições, que para a época eram muito boas. Ele aceitou e eu fui contar ao Lúcio Pereira, que me libertou.

Estamos em plenos anos 60?
Em 1963. Estive 7 anos no Centro do Livro Brasileiro, de onde saí em 1970.

O que fazia no Centro do Livro Brasileiro?
Estava ao balcão, dirigia os outros empregados de balcão e do armazém, e fazia os pedidos dos livros necessários ao Brasil. Passado 1 ou 2 anos, o Álvaro Gonçalves Pereira meteu o genro como sócio, o Joel de Matos, e começou a haver uma fricção entre mim e ele. Chegou uma altura em que eu já não podia aturar aquilo. Entretanto, um senhor que tinha um cabeleireiro em Campo de Ourique indicou-me uma casa que estava para passar na esquina da Rua 4 de Infantaria com a Rua Almeida e Sousa. Como eu já estava a pensar em ter a minha livraria e como já morava em Campo de Ourique, fui ver o espaço. Pediram-me 180 contos de trespasse naquela altura e não hesitei. Fiz a escritura em Outubro de 1969, mas como o Álvaro Gonçalves Pereira pediu-me para fazer o balanço antes de me ir embora, só abri a Livraria Ler em Fevereiro de 1970.

(continua)

2 comentários:

Anónimo disse...

Conheci ainda o Sr. Luís e ainda hoje é a minha livraria. É muito bom ter estes estandartes de liberdade, literatura e simpatia no nosso Bairro, que tanta falta fazem.
Fico a aguardar a continuação. Obrigada

Elsa Figueiredo disse...

Conheci o Sr. Luís. Lembro-me de ele ter livros de Luís Pacheco na banca e de me ter informado que o livro que eu ia comprar tinha sido editado por ele. Eram os “Textos de guerrilha”, edição da livraria Ler.

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